20 set 2025
ciclismo
Eram 5 da manhã quando o despertador tocou. Muito para lá de ensonado depois de uma noite mal dormida e uma semana cansativa, havia que despachar, montar na bicicleta de estrada e seguir para uma tirada de 170 km para chegar a horas de almoçar com a familia que estava na terra por honras das festas locais.
Tudo preparado na véspera para não perder tempo e logo seguia ainda pela penumbra do escuro da noite.
Pedalar à noite trás outros condimentos. Para lá da visibilidade que é pouca, principalmente quando o kit de luz é rudimentarmente adaptado.
Há outros cheiros que se sentem, outros barulhos que se ouvem e até outras coisas que se vêm. Talvez seja pela hora. Cada fase do dia tem os seus cheiros e os seus sons e até a sua luz, ou talvez seja porque se os olhos não vêm tanto, todos os outros sentidos ficam mais apurados. Ou então ambos.
Até a estrada parece outra e não fosse conhece-la da rotina diária, e cairia nas armadilhas que um alcatrão remendado tem sempre preparado aos mais incautos.
O dia tardava em clarear. Cedo deu para perceber que estava um céu carregado.
Também cedo percebi que me esquecera dos óculos de sol (pois, não estava sol, logo não dei por falta deles. É como quem esquece o guarda-chuva em algum lado porque quando se sai, parou de chover...).
Depois de me insultar durante 2 minutos, pensei em voltar para trás mas isso implicaria perder tempo e isso era algo que não estava nada no programa. Pensei em seguir assim sabendo que isso implicaria vento, poeiras e insectos pela cara e nos olhos.
Depois de me insultar durante mais 2 minutos, resolvi continuar adiante e pelo caminho comprar uns óculos quaisquer para remediar.
Aqui e acolá passavam carros ora em sentido contrário (alguns acham que os seus máximos não encandeiam ciclistas), ora no mesmo sentido, sendo que estes últimos sempre ajudavam a iluminar melhor o meu caminho. Alguns candeeiros públicos em zonas residenciais e empresariais também.
Foi ja de dia que parei numa localidade alentejana para resolver esta questão. Parei numa bomba de gasolina grande mas nada de óculos. Segui mais adiante e encontro uma papelaria daquelas "tem tudo" e nada. O assunto acabaria por ser resolvido metros mais adiante numa loja de chinês.
As escolhas não eram muitas e claro que para a modalidade em questão, nada mesmo.
Saio da loja onde deixo 4 eur pelo objecto. Quando pego na bicicleta pousada à entrada da loja, vejo o meu reflexo na montra. Estava uma espécie de Tom Cruise no Top Gun mas em vez da mota, bicicleta.
Aos primeiros segundos, posso avaliar que os óculos são mesmo muito maus. Fazem um reflexo lateral em cada lente que parecem espelhos retrovisores (em determinada ocasião, cheguei mesmo a assustar-me com um reflexo de um camião que passou mais perto). O desconforto no nariz também não ajuda e encaixam mal na cara ficando muito longe de cobrir todo o campo ocular.
Ainda assim, naquele momento eram os melhores do mundo porque era os que tinha.
Contudo, pouco depois, uma névoa no ar cobre toda a região. Entro pelo nevoeiro adentro e a sua humidade molha as lentes e nada vejo. Tiro-os para seguir melhor.
Os castelos timidamente escondidos nas localidades que se vão seguindo uma após outra, riem-se certamente desta minha figura.
Quando o nevoeiro dissipou, chegou o momento de subir mais demoradamente. A subir não são tão precisos os óculos e tiro-os. Vem a descida a seguir e coloco-os mas volta o nevoeiro.... Lá vai de tirá-los outra vez.
Finalmente o sol começa a querer brilhar e quando volto a eles novamente, já estão empenados e bem tortos na minha cara.
Só dá para rir mesmo. Arrumo o assunto para canto. Sempre serviu para me distrair um pouco.
Agora eram algumas dores que vinham ao barulho. Constato nesse momento que não estava nos meus dias.
Não estando frio nem calor, uma brisa ora lateral ou frontal, não incomodava muito mas não era o mesmo que total ausência de não existir.
Alimentava-me e hidratava-me cuidadosamente. Geria o esforço. Mas à medida que os km somavam nas pernas, sa dificuldades faziam-se sentir. E a última parte era a mais exigente.
Isto das longas tiradas tem muito de psicológico. É claro que de físico também mas o psicológico é fulcral. Tentava também gerir esta parte. Exultava-me com os feitos do João Almeida e do Pishardo, tornando a pedalada mais vigorosa. Mas era sol de pouca dura. As pernas e até as nádegas, acusavam desconforto.
O sol agora já estava no alto e o calor aumentava. Uma paragem para encher bidon outra vez e comer algo e de novo na estrada.
Esperava que a qualquer momento passasse esta fase. Esperava entrar naquele estado catatónico necessário nestas tiradas longas mas a cabeça não queria desligar. Tentava abstrair-me da distância que faltava e da que já tinha percorrido mas de quando em vez, as placas enormes à beira da estrada atiravam-se bem para a frente dos meus olhos. E agora já não havia nevoeiro nem óculos para bloquear a visibilidade. Agora que até dava jeito...
Por esta hora tentava manter o mesmo ritmo. Sabia que se quebrasse seria um arrasto ainda maior. Esperava também que passando por esta fase (há sempre um momento "duro" em qualquer tirada longa mas que eventualmente passa), voltaria às boas sensações. Não aconteceu mas pelo menos deu para colocar alguma determinação no pensamento.
Faltavam pouco menos de 10 km e começou a vir o sentimento de dever cumprido. Agora era completar. Um trajecto que bem conheço já não traria surpresas.
Rolar até ao fim, saborear as últimas pedaladas, beber uma cerveja ao chegar.
Há dias mais duros, há dias que são mesmo mais castigantes.
O que foi ao lume:
- 1 sandocha de manteiga de amendoim
- 1 sandocha de queijo
- 1 sandocha de presunto + meio pacote de batata frita + coca-cola
- 2 bidons de água
- 1 bidon de isotónico
Devia e deveria ter comido mais (e terminei com uma sandocha no bolso)
170 km
6h08
(SO FALTA COLOCAR AQUI A FOTO DO OCALU)
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