13 dez 2025
Ciclismo
O dia chegado.
Mas antes, ainda antes de colocar os gluteos em cima do selim, dizer que este é um dos meus dias ciclisticos preferidos do ano.
Não há uma mão cheia de vezes que não me lembre, recorde ou tenha inteira vontade do que se realiza neste dia.
Provavelmente reproduzo esta linha todos os anos, mas este ano mais do que nunca, sinto a impreterivel necessidade de o fazer.
É um dia feliz, de sofrimento, mas feliz. O Tróia - Sagres não é uma prova, não é um evento combinado. É a data em que um dia, alguém (de seu nome Malvar) decidiu fazer-se à estrada nesta epopeia que liga a costa vicentina ao barlavento algarveano, na ponta de Portugal de onde sairam os navegadores lusos.
A cada ano que passava, Malvar foi inspirando outros como ele, primeiro amigos, depois amigos dos amigos, depois desconhecidos, depois desconhecidos dos desconhecidos.
Há quem refira que chegámos (sim, também me juntei ao barulho) a ser mais de muitos (4.000??). Era vê-los a vir de todas as partes do país em carrinhas, autocarros, carros, apeados de bicicleta somente.
Eram 3 barcos cheios.
Mas isto já é missa velha.
Mas este ano mais do que nunca, sinto a necessidade de sublinhar o que era e o que foi neste dia 13 e sublinhar a evidência daquilo que me move (e a muitos mais) por este dia.
Superação, desafio, camaradagem e amizade, são só alguns dos sentimentos que podem ser invocados para descrever os motivos que levam cada um de nós a realizar este evento. O Malvar deu um dia o exemplo, uma multidão segiu sem hesitar embrionada muito certamente no mesmo espírito que ele.
O Tróia - Sagres é para mim isso mesmo: um dia de sofrimento, de dores, de esforço, de prazer de pedalar, de superação e desafio e camaradagem!
Não é uma prova, não há classificados nem tempos contados (apesar de muitos acabarmos sempre a olhar para o ciclocomputador à procura daquele tempo mais reduzido). É convivio, é camaradagem!
Não há ano em que não conheça novas pessoas, criadas na circunstância, amizades instantâneas, conversas imediatas bem dispostas ou de partilha de sofrimentos, entre-ajuda formando-se grupos, moralizando os mais aflitos e sôfregos, incentivados pelos apoios dos outros, pelas pessoas à beira da estrada desses povoados por onde passamos.
O Tróia-Sagres é o dia mais humano em cima da bicicleta. Este é o meu sentimento. Vejo e sinto a missão de cada um, da ou das equipas profissionais portuguesas que passam a um ritmo alucinante cujo objectivo é juntarem-se nesta celebração da bicicleta, mostrarem as suas cores, treinarem; dos grupos mais aguerridos que seguem frenéticamente com o objectivo de chegarem o mais rápido possivel a Sagres, e de algumas minorias como miudos adolescentes ou adultos já em idade respeitosa, casais em que ele puxa por ela, ciclistas de peso corporal que lutam a cada pedalada, turistas que vão em ritmo de passeio, impreparados que vão ou tentam ir com os amigos que os arrastaram para esta jornada em conversas de café prometendo um dia impar (sem que lhes fosse possivel calcular o quão duro iria ser).
Sinto-os todos. Os que passam por mim, os que passo por eles, os que estão parados, os que ainda pedalam quando já regresso a casa de carro e a tarde vai virando noite. Sinto o que move cada um deles. Tenho as suas satisfações, as suas alegrias mas também as suas dores, os seus sofrimentos. Sinto-o.
Este ano fomos poucos. Este ano fomos muito menos que no ano anterior e nos anos anteriores.
O barco e pouco mais que meio e nem houve o especial ferry das 06h30.
Meia duzia de pedaladas e já me encontrava sozinho na estrada, algo impensável logo no arranque. Um ciclista juntou-se a mim, abordou-me para a trivial conversa que sempre ajuda a espantar o frio do raiar do sol que ainda não tem força para aquecer (no dia anterior choveu 24 horas, hoje nada e nem frio estava): "gostaria de encontrar o Malvar e lhe dar um abraço".
Eis mais um que se movia pelo exemplo, pelo querer aceitar o desafio e honrar o que outrora alguém tivera a coragem de idealizar e realizar.
Era o seu segundo ano. Expliquei-lhe que não era fácil, que não saberia dizer se ele partia mais cedo ou mais no fim, que provavelmente seguiria em grupo sendo mais dificil de identificar e que com tantos grupos mais ainda. Este ano, pelos vistos, nem tantos assim.
Estava feita a primeira amizade e partilha do dia, mas que antecipadamente me pareceriam que seriam ocorrências raras.
Desengane-se quem pense que faço isto pelas conversas a toda a hora. Não antes mesmo pelo contrário. Gosto de seguir embrenhado nos meus pensamentos ou com os meus sentidos a absorverem tudo o que este dia dá. Mas não me imiscuo de dar um "vamos lá" aos que vão dificeis e descrentes, ou a d ar dois dedos de prosa aos que me assomam para tal.
Uma hora depois e apenas rominava para mim o quão desapontado estava. "Um autêntico deserto" era a frase que batia incessa na minha cabeça como um sino nas badaladas do meio-dia. Outrora cheias de um enxame de ciclistas que não deixavam ver a cor do chão, hoje essa linha preta alcatroada via-se a perder de vista e eu seguia praticamente sozinha nela.
Não muitas vezes começou a baixar em mim a vontade de retroceder, parar, ficar por ali e voltar para trás.
Desalentado e cabisbaixo não conseguia deixar de pensar na vastidão que seria até Sagres, que se em tão tenra hora já estava só, como seria passadas mais algumas.
Desengane-se também que pense que eu não gosto de pedalar a solo. Gosto, tenho tiradas assim só minhas. Mas este é um dia em que me "visto" para vir para a festa, para a romaria.
Mais adiante pensei: faço metade. Páro em Mil Fontes e está feito.
Onde estava o colorido? as conversas e gritos viris tolos dos que de peito feito àquela hora exaltam como galos para depois desfalecerem horas a fio? o "chilrear" frenético das correntes e carretos das bicicletas que rasgavam o silêncio dos campos ainda cobertos do orvalho matinal? os carros e carrinhas de apoio a passarem para irem mais adiante preparar os abastecimentos dos seus?
Nada! Nada, nada.
Perto de Santiago do Cacém, dois colegas de Coimbra. O sotaque não enganava. Um pequeno toque nortenho, uma perna bem redonda, conversa animada e descontraida. Algumas partilhas e seguimos juntos.
Pouco depois, um grupo juntava-se. Vinham em bom ritmo mas abrandavam de quando em vez (para castigo dos mais entusiasmados que reagiam negativamente a essa "ordem") para não perderem uma jovem e um ou outro elemento menos preparado.
Animei-me um pouco e pensei que em Santiago encontrasse muitos que habitualmente fazem a primeira paragem.
Não. Santiago do Cacém estava irreconhecivelmente um deserto.
Voltava ao meu desconsolo e à evidência que seria assim a manhã toda e que Mil Fontes passaria a ser o meu destino.
Não queria crer nesta realidade. Os motivos que a ela levavam iam aparecendo na minha cabeça como post-its no computador de um funcionário de escritório.
- o mau tempo: uma véspera chuvosa? mas já houve outros anos assim....
- o custo de vida: com ou sem alojamento, mas com deslocação, alimentação, aos que vêm de longe e aos que pagam a aorganizações que também elas poderão ter aumentado os preços por causa do aumento das despesas...a vida está cara.
- o incidente do ano em que as forças de autoridade quiseram "proibir" este dia: sem sucesso mas terá afugentado uns quantos.
- o covid: será? deveria ser o contrário.
- os acidentes: relatos têm havido (eu presenciei um) de vários acidentes e alguns perigos. É um facto, mas basta termos cuidados e fugir das confusões. Cabe tudo na estrada com segurança.
- grupos que realizam semanas antes: porque é menos confusão, porque não sei, porque eles lá sabem...
E no meio deste consciencializar do motivo, saltitando entre estes argumentos ou falta deles, ia seguindo em direcção a sul, deixando-me arrastar neste pesar e sem não deixar de lamentar.
Custava-me acreditar que tanta gente abrisse mão de um dia assim, de celebração da bicicleta, do ciclista, do exemplo para outros, da missão quase como um dever cívico para trazer outros a este porto de uma vida mais saudável, de partilha da alegria que é pedalar a só ou acompanhado, e honrar a magnitude do que alguém um dia alemjou alcançar com um querer inabalável (11 horas demorou pela primeira vez o Malvar a realizar esta travessia), que num dia frio e chuvoso muitas vezes de Dezembro, estoicamente se vai a terras de praia e sol.
Custava-me a acreditar que entre 1.500 e 2.500 ciclistas pagam perto de 50 euros para participarem por esses Granfondos espalhados pelo país fora, para competirem entre si, e que aqui, à borla, em bom ambiente, em celebração, não quisessem mais participar.
É este talvez o espelho da sociedade: cada vez mais competitivos e menos sociáveis. Uma tristeza invadia-me com este pensar.
Voltava às pedaladas pois um grupo com andamento animado trouxe novo fôlego ao meu estar. Segui na frente animadamente até parar em Mil Fontes para abastecer.
Deu-me alento. Decidi continuar fosse como fosse. Uma espécie de força de revolta, de grito baixava em mim e foi esse o tónico que me fez motivar.
O resto da viagem é o que se sabe. Com mais ou menos sofrimento, com mais ou menos vigor, segue-se sempre com olhos postos no fim da estrada. E o fim da estrada é em Sagres.
Curiosamente lá fui aqui e acolá apanhando ou sendo apanhado por terceiros. Curiosamente com menos, vemos mais. Mais esforçados, mais impreparados, mais disponiveis a falar, mais humanos. Vi também mais estrangeiros, vi também mais iniciantes, vi até alguém que nunc atinha visto: o Malvar!
Duas palavras trocadas, um abraço gestual simbólico e um muito obrigado.
Lá seguia ele no seu ritmo, curiosamente em registo solitário. Talvez o último da sua geração de amigos e companheiros? Não sei. Sei sim que ali seguia firme como da primeira vez, faz mais que uma decada! Um exemplo que perdura.
Afinal, com tão menos (tão menos) gente e no final até pareceu tão mais.
Espero que este dia não morra nunca. Espero que retome a que regressem ou cative novos ciclistas aventureiros que se queiram desafiar.
Espero pelo próximo ano para lá voltar.