terça-feira, 5 de agosto de 2014

Setúbal - Elvas

Eram 4 da manhã e eu acordado que nem um rouxinol a meio-dia pleno de vitalidade. O despertador só estava para tocar às 5. Forcei durante toda essa hora dormir mas sem sucesso. Nem sequer dormitar ou qualquer sonolência que o valha. Nada.
Queria dormir. Sabia que precisava dormir. Espreitava pelo canto do olho a escuridão que entrava pela janela na esperança que esta inspirasse o sono a cair em mim. Nada. Da escuridão apenas o reflexo dos grandes, brilhantes e enormes números que brotavam do relógio-despertador estacionado na cabeceira ao meu lado.
 Tantos dias, todos os dias este companheiro a espetar-me o seu ferrão agudo nas profundas entranhas do mundo mais profundo do meu ser. Nesta manhã frustrei-lhe esse prazer, ainda que contra a minha vontade, e acabei por perceber afinal, que essa ferroada que tanto magoa, trás afinal consigo o doce gosto de quem está tão bem a dormir.
  Dormir? nada ou muito pouco. Factura que viria a pagar até Pegões.

  Antes disso, pouco ou nada. Rendez Vouz com o turtle na penumbra da madrugada, um esgueirar pelas artérias da cidade ausentes de vida, só aqui e ali salpicadas pelas carrinhas de quem anda a ganhar a vida quando todos os outros dormem, e pelos noctivagos que retornavam a casa depois de festividades copofónicas nos bares e afins.

    Turtle ia confidenciando que não dormira senão a partir das 4. Hmmm, inversão? mau presságio. Que tomou comprimidos, que desesperou por se deixar adormecer e que quando isso aconteceu, o seu despertador desferiu tal estocada que quase o deixou fora deste texto. Mas de peito feito à coragem, conseguiu erguer-se da cama.
   O mesmo peito feito atirava-o agora na dianteira. O vento soprava fraco ou quase nulo. A temperatura estava agradável. Poucas nuvens no céu que clareava a cada km que passava e deixava adivinhar um nascer de um Sol enorme, gigante, bem lá ao fundo na nossa frente, bem a nascer lá para onde seguiamos.
    E assim dormi atrás de turtle até Pegões e foi a sua azia de estomago que me acordou. Isso e um café que bebi no unico estabelecimento aberto àquela hora. A azia do outro foi brindada por um pastel de nata, definitivamente a escolha errada se ali estivesse a proteste.

  Acordado agora a pedalar queria antes adormecer. A pedalada fluia e as pernas começavam finalmente a soltar-se. A cabeça que não é de meias vergonhas também e começou a dar aso à sua imaginação. E tão bem que imagina dúvidas. E por essas dúvidas tão bem que preferia antes dormitar.
 
  Vendas Novas, Montemor. Primeira etapa alcançada. Agora começava o verdadeiro desafio. As localidades, os povoados, as pequenas edificações à beira-estrada plantadas desapareciam. Agora eram rectas infindáveis ladeadas por um oceano de Alentejo.
  Os aromas poisavam no topo do nariz e brincavam com o nosso olfacto. Saltitantes e intrigantes, por vezes tão bem definidos, outras vezes dificeis de destrinçar. Cheiros do campo. Cheiros da manhã que a manhã faz despertar.

  A azia está a corroer o turtle por dentro e nem a toque de comprimidos comprados numa farmácia em Vendas Novas, a coisa lá ia. Em Arraiolos o homem implorava por bananas. Subimos ao centro da tapeçaria nacional e no mercado lá estavam as bananas. Três para ele, uma para mim.
  Adiante, regresso à estrada e não vá saber-se eu mais forte e mais robusto que Arraiolos me dá a dor no joelho.
   Agora sim uma caminhada justa para ambos.
   Os próximos km foram torturantes. O cenário de abandono era uma fantasia que se confundia com a realidade. Quanto mais tempo poderiamos aguentar, cada um transportando o seu pesado fardo.
   Não pedalávamos. Algo pedalava por nós enquanto conjecturávamos sobre o carro de apoio que deveria passar por nós mais coisa menos coisa a esta hora. Nada. Se passasse provavelmente significava o abandono. A tempestade era grande.
   Parámos adiante. Mais uma banana para a azia e o já meu habitual diesel plus + (sandes de presunto com coca-cola).
  Levanta-se vento, a Norte chove. Vem na nossa direcção e ja se sentem uns pingos. Começamos a rir. Rimos soltos como soltas estavam as nuvens. Loucos. Estavamos loucos. Só tudo tinha tendência a piorar. O carro de apoio ligara. O apoio virou-se contra os apoiados e os apoiados apoiavam agora o carro de apoio perdido algures no Alentejo. A modernidade da tecnologia fazia das suas. Gps, telemoveis, tanta coisa e afinal os antigos é que sabiam.
  Por tecnologias, a minha também começava a falhar. O garmin que já vinha bem para lá de uma hora pior de que azia e joelhos, apagou-se. O telemóvel deitou-se ao seu lado. A ligação ao século XXI fazia-se agora exclusivamente pela nave espacial de turtle.
 
   Vimieiro. Grito de ordem, rujido de força. Turle passa ao comando. Uma fúria? um desejo incontornável de terminar o que começáramos? o último suspiro antes de...? Certo é que de uma mancha lenta de lava que se arrasta vagarosamente  passamos ao bravio valente de um riacho que corre nas primeiras águas do Outono. Tão rápido, tão saboroso. Mas tão doloroso ao mesmo tempo e mais não doeu porque naquele momento o apoio apareceu. Passou, continuou, continuámos.
   Foi turtle quem me disse que meus dentes estavam cerrados. Era da dor. Pedalava de dor, pedalava de raiva. Esta tormenta que voltara logo neste dia. Ele já não se sentia.
   O mármore ao fundo. Estremoz. Já cheira ao fim, bradava. Mas a caldeira rebentara e a dor agudizara. Subir agora, não muito inclinada mas longa e pesarosa. Era para nós como para um barco sem motor, sem remos, sem vela nem vento, sem eira nem beira.
   Mais devagar. Mais lentos. A cada pedalada mais um martirio, mais uma chaga cravada. Já não me levantava. Não conseguia. A dor doía. Por esse motivo as pernas e o que lhes segue logo por baixo reclamavam. O turtle já não reclamava.

   Ali, adiante. A estrada vira mais à esquerda. Perde-se de vista no topo da colina por entre oliveiras. Depois acaba. Cheira o azeite. Cheira o sabor da vitória. Cheira este abraço.

   Concluimos, acabámos. Uma jornada de horror. Mal desmontado da bicicleta, a certeza que terei de repetir para fazer tudo isto como tem de ser: sem dor, só prazer.

   170km em algo como 06:30h?? não sei. Ficam para a próxima.

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